domingo, 7 de abril de 2013

Quem come o homem heterossexual?


Recebi um convite para uma festa. Desses que se recebe todos os dias no facebook. Embora na prática essas festas carreguem consigo muito do que há de ruim na sociedade, por muitas vezes um convite é suficiente pra que isso esteja explícito. Festa na Laje, dizia, da Comunicação Social da UFMG. Ao fundo, via na imagem uma silhueta de uma mulher negra – a julgar pelo cabelo crespo e bunda grande - em um fundo vermelho. Além de estar colorida em preto, é claro. 
(Recorte da figura já modificada)

Na descrição, uma breve história da preparação da “piriguete que se preze” para a festa. O subtítulo da festa: respeita quem te come. Elementos associados em perfeita harmonia para figurar a festa na laje. Será? Entendo a ideia. Como admirador e respeitador do funk carioca entendo e fomento a diminuição da distância entre o nosso mundo das classes médias abonadas e os ambientes pobres ou das favelas. Penso que a divisão entre alta e baixa cultura é um preconceito de classe.
Mas, como se apropriar dessa cultura sem menosprezá-la? Como usá-la de forma crítica? Essas são perguntas difíceis de serem respondidas. Se ambientes que simbolizam os lugares culturais da pobreza como as lajes fossem, por exemplo, misóginos, a apropriação desse lugar cultural teria que ser misógina também? Não. Não e não. Voltando ao conjunto de imagens que estavam no convite me perguntei, que associação é essa? Qual o produto que associa a laje, uma mulher negra, a figura caricata e acrítica da piriguete e o mote “respeita quem te come”?
Fiquei absolutamente perplexo ao comentar criticamente a esse produto e perceber que a maioria das pessoas parecia achar isso tudo nada demais. Ou como disse um dos estudantes, "Muito mimimi pra pouca coisa." Até que ponto a apropriação que fazemos da chamada cultura popular está figurando como uma desconstrução das diferenças? Como diferenciar essa apropriação do escárnio? Isto é, quão difícil é dizer se a paródia reafirma ou desconstrói esses preconceitos? Particularmente acredito que a paródia pode fazer essas duas coisas, escárnio e apropriação crítica. Para isso, é preciso cuidado. Cuidado que se espera de estudantes veteranxs da graduação de Comunicação Social. Há a falsa impressão de que uma festa dispensaria certas responsabilidades. Qual a responsabilidade de associar a mulher negra a uma caricatura da piriguete? E a de relacionar a figura criada da negra piriguete com a laje? E o que tem a mulher na laje a ver com “respeito”? Que fique claro, não é qualquer respeito, é respeito àquele que come. Alguém tentou explicar.

 “ Gente, tanta mulher comendo homem nesse mundo. Tanta mulher comendo mulher. Tanto homem comendo homem. Vamos comer! Mas com muito respeito. :D

disse um dos participantes. Isso sim me fez levantar uma questão. Parecia absurdo antes, ficou pior.
É mesmo?  Por ora nem comentarei a reveladora crença na heteronormatividade binarista. O que é uma relação de respeito? Se a frase começar com “respeita a quem” ela já é problemática porque pressupõe um sujeito a ser respeitado em específico, com um verbo imperativo. Significa que ela denota uma relação de poder onde estão claramente configurados alguém que manda e alguém que respeita. Como se não fosse suficiente pra compreender a relação de poder estabelecida, a frase é completada com o verbo comer no sentido sexual. Respeitadx e respeitadxr se convertem em ativx e passivx, comedorx e comidx. Ora e quem é que come quem nesse mundo? Desnecessário frisar que ativx e passivx figuram uma oposição de masculino e feminino. Mais que uma posição de poder exposta em termos de masculinidade, devemos nos fazer pensar, quem é o ativo? É aquele que detém o uso do poder, é aquele que pode comer, o que pode fazer a “função do homem”, o que pode penetrar. Diferente do que nosso amigo do comentário acima parece entender, o ativo de uma relação sexual é no imaginário que nos é comum o homem, seja essa relação hétero ou homo. A frase que começa exibindo uma relação de poder é completada, deixando explícito que se trata de uma relação de poder de gênero.
                É essa frase que  é ilustrada por uma negra piriguete na laje. Essa associação revela uma misoginia imperdoável. Essa associação revela que essa paródia não está descontruindo preconceitos, mas, pelo contrário, os afirmando. Essa paródia se esquece que debaixo das lajes moram mulheres que sofrem com o machismo e com a violência diariamente. Esquece também que essas mulheres vão as ruas, sofrem racismos, machismos, classismos e violências diversas frequentemente silenciadas, invisibilizadas. A piriguete pode até desfilar todo seu comportamento sexual, desde que respeite quem a come. Esse respeito é sinônimo de submissão, de obediência e passa longe do respeito em que eu acredito.  Essa paródia é um produto que não se percebe enquanto machista, misógino, classista e racista. É essa paródia que muitxs estudantes de comunicação não acham nada demais. Esse é o escárnio transformado em piada. Um dos estudantes citou por várias vezes Rafinha Bastos em sua argumentação sarcástica, o que reforça com que tipo de piada estamos lidando.
                Após alguma argumentação, alguns favoráveis ao ponto levantado e uma larga maioria contrária, os cinco organizadores da festa e responsáveis pelas imagens e pelo convite, não sei de que forma, decidiram sacar a frase polêmica e modificaram a imagem (segundo um deles, de todo o material da festa), acrescentando uma mulher branca à beira da piscina. Muda alguma coisa? Certamente. São os criadores da imagem racistas e misóginos? Não poderíamos afirmar pelas imagens. Não se trata de acusar pessoas, mas de apontar um acontecimento sociológico que tem mais a ver com o trote do direito do que querem crer alguns-mas estudantes de comunicação. A modificação do convite anterior denota uma reflexão no caminho da resposta negativa. Não é isso que choca. Chocante é uma maioria de um grupo de unviersitárixs achar que tudo aquilo estava tudo bem. Achar que o problema é alguém fazer a reclamação e não o conteúdo do convite. Aquelas pessoas parecem não perceber que respeitar quem te come é uma cadeia de relações de autoridade que culmina com uma figura pouco carismática no topo. Se devemos respeito a quem nos come, devemos respeito ao masculinismo, à relação desbalanceada de poder, a relação essencial que naturaliza e reproduz uma série de violências. Normalizadas, essas relações de poder se perpetuam a cada dia. E quem ganha a batalha pelo poder é o Normal. Com artigo “o”. No mundo onde se respeita o comedor só alguém pode ficar no topo. O patriarca. O Homem come a mulher. O Homem come o homem.

Mas quem come o Homem? Quem come o Homem heterossexual? No mundo onde mandam os comedores, reina quem não é comido.

Confesso: esperava que ao menos no nicho universitário, em especial na fafich, a monarquia de gênero fosse mais fragilizada, ou no limite, que houvesse uma democracia de gênero mais audível. Por triste que seja, a denúncia do culto ao monarca encontra palmas silenciosas, encobertas com vaias que tentam nos comer. A parte feliz é que eu acredito em outro tipo de respeito. A outra tristeza é de minha impotência ao saber que, na minha confortável posição de homem branco heterossexual, pouco posso fazer além de enxergar aquelxs que pensam como eu mas são caladxs pela violência cotidiana. Como milhões vaiando calam meia dúzia a gritar. Ou melhor, como meia-dúzia dotada de poderosos microfones calam em vaia os gritos de milhões. Gritos de dor, de pânico, de vontade de gritar.

Por fim, não se enganem: esse texto não é sobre o convite da festa. É sobre quantos convites à opressão de gênero, raça e classe recebemos diariamente. Nessas festas eu não vou. Espero que sejamos muitxs para fazer nossas próprias festas num futuro próximo – infelizmente, num movimento que está mais próximo do querer do que do acreditar. 

domingo, 17 de março de 2013

É o amor (que mexe com minha cabeça e me deixa assim)



                A noção de Amor é estrutural. Nas músicas, nos filmes e predominantemente no senso-comum da vaga categoria a que referimos como ocidente. Talvez pensar em termo de sociedades judaico-cristãs fosse mais adequado, embora não menos vago.
Quando digo que o amor é estrutura não tenho por intenção dizer que ele não existe, ou que se trata de um mito. Muito antes pelo contrário, atento ao fato de que ele existe. Porém existe em suas práticas e não em uma essência. Existe em práticas sociais e nos valores compartilhados que o sustentam.
No nosso cotidiano quase tudo se torna justificável em termos de amor. É o amor que mexe com minha cabeça e me deixa assim. O amor me deixa assim, me compele a estar assim. Permite-nos cometer uma categoria especial de crimes – os passionais. Entre outros milhares que poderíamos tirar das canções populares e do cotidiano, fica mais claro em que dimensão considero o amor estrutura. Contudo, caracterizado dessa forma não fica exposto o problema que enxergo nisso tudo.
Do modo como vejo, o amor construído enquanto estrutura carrega consigo uma série de valores que são bastante importantes para as sociedades ocidentais, que ajudam a caracterizá-las. Não se trata de qualquer amor, ou das variações várias para o que se pode chamar de amor. Trata-se de um conceito que carrega consigo um ludismo, um misticismo, uma mitologia, e se configura como fundamental para as pessoas.
All you need is love. I will always love you. I just called to say I love you. Todos esses exemplos de cultura popular carregam consigo uma poética afim. Das tradicionais histórias dos contos de fada, aos conservadores livros contemporâneos de Stephanie Meyer, impera um ideal de amor. O amor enquanto estrutura é sempre ideal. Está num plano virtual, que é fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente. Digo mais! É querer estar preso por vontade e é servir a quem vence, o vencedor.É  ter com quem nos mata, lealdade. O que não fica tão claro, com Zezé di Camargo ou Camões é que esse amor ideal tem pressupostos, e paródias, que na maior parte das vezes não são subversivos, pelo contrário, fazem afirmar suas características excludentes.
Excludentes sim. I hope you don’t mind that I put that in words: ingênuo aquele que acredita na pieguice que o amor dispensa a necessidade de dinheiro, de explicação. I wish I could give the world to you, but love is all I have to give. O ponto central e problemático do amor enquanto estrutura é que ele traz pressupostos de um amor ideal e legitima a entrega da agência a uma passividade justificada.
Esse amor ideal é heterossexual.
When a man loves a woman! Sim, afinal príncipes e princesas no escopo político de uma monarquia simbólica, são homem e mulher, masculino e feminina, heterossexuais. É sintomático que o contexto pós-medieval ainda seja tão relevante nas nossas histórias de amor. Ainda que bem adaptados, digamos, se uma princesa passa a ser uma menina comum em dúvida entre um vampiro e um lobisomem. Vale, vale tudo. Vale o que vier. Vale o que quiser. Isto é, vale quase tudo. Só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher
Esse amor ideal é heteronormativo.
Não meramente heterossexual, a noção de entrega, do esforço supremo pelo amor perpassa pela agência de um dos amantes e a passividade do outro. A agência masculina e a passividade feminina. A princesa na torre, a espera de um príncipe, corajoso, forte, másculo. Por isso digo que ainda que não heterossexual, frequentemente a noção de amor abriga a bipolaridade de agência e passividade, com dois papeis de gênero bem definidos. Preconizo o amor de casal, mas pobre da mãe que não tem o instintivo, avassalador e protetor amor materno. O amor tem preconceito de gênero.
Esse amor ideal é monogâmico.
O amor ideal parece ser uma combinação que só é possível em pares. O que me leva a pensar imediatamente na sua necessidade de ser binário entre ativo e passivo. Talvez esse seja o exemplo mais importante para se compreender o caráter normativo do amor enquanto estrutura. Quando se ama mais de uma pessoa é provável que não seja amor. Valeu, muito obrigado, mas agora eu virei puta. E como se diz, putas não amam. Ou aquele velho discurso machista do marido infiel para quem o que o corpo faz, a alma perdoa. Paixão com várias pessoas, amor com uma só.
Isso demonstra pra mim de maneira clara que a noção de amor estrutural e contemporânea é um pacote de regras sobre um comportamento ideal. De maneiras indiretas ou às vezes bem diretas, o amor ensina a ser monogâmico, heterossexual, heteronormativo. Moralmente elogiável. Príncipe, branco, lindo, corajoso e másculo – de preferência rico. Princesa, feminina, recatada, a esperar seu verdadeiro e único amor. Sou diferente dos Beatles, money can't buy me love. O amor é que não me compra, para o resto estou aberto a negociações. 


Longe um do outro
A vida é toda errada
O homem não se importa
Com a roupa amarrotada
E a mulher insiste
E quantas vezes chora
A força da paixão de um grande amor que foi embora.


Esse refrão carregado de preconceitos, binarismos e papeis de gênero é elucidativo. Foi escrito por Zezé de Camargo, que não nos deixa dúvida: é o amor.