Recebi um convite para uma festa. Desses que se
recebe todos os dias no facebook. Embora na prática essas festas carreguem consigo
muito do que há de ruim na sociedade, por muitas vezes um convite é suficiente
pra que isso esteja explícito. Festa na Laje, dizia, da Comunicação Social da UFMG.
Ao fundo, via na imagem uma silhueta de uma mulher negra – a julgar pelo cabelo
crespo e bunda grande - em um fundo vermelho. Além de estar colorida em preto, é claro.
(Recorte da figura já modificada)
Na descrição,
uma breve história da preparação da “piriguete que se preze” para a festa. O
subtítulo da festa: respeita quem te come. Elementos associados em perfeita
harmonia para figurar a festa na laje. Será? Entendo a ideia. Como admirador e
respeitador do funk carioca entendo e fomento a diminuição da distância entre o
nosso mundo das classes médias abonadas e os ambientes pobres ou das favelas.
Penso que a divisão entre alta e baixa cultura é um preconceito de classe.
Mas, como se apropriar dessa cultura sem
menosprezá-la? Como usá-la de forma crítica? Essas são perguntas difíceis de
serem respondidas. Se ambientes que simbolizam os lugares culturais da pobreza
como as lajes fossem, por exemplo, misóginos, a apropriação desse lugar
cultural teria que ser misógina também? Não. Não e não. Voltando ao conjunto de
imagens que estavam no convite me perguntei, que associação é essa? Qual o
produto que associa a laje, uma mulher negra, a figura caricata e acrítica da
piriguete e o mote “respeita quem te come”?
Fiquei absolutamente perplexo ao comentar
criticamente a esse produto e perceber que a maioria das pessoas parecia achar
isso tudo nada demais. Ou como disse um dos estudantes, "Muito mimimi pra pouca coisa." Até que ponto a apropriação que fazemos da chamada
cultura popular está figurando como uma desconstrução das diferenças? Como
diferenciar essa apropriação do escárnio? Isto é, quão difícil é dizer se a
paródia reafirma ou desconstrói esses preconceitos? Particularmente acredito
que a paródia pode fazer essas duas coisas, escárnio e apropriação crítica. Para
isso, é preciso cuidado. Cuidado que se espera de estudantes veteranxs da
graduação de Comunicação Social. Há a falsa impressão de que uma festa
dispensaria certas responsabilidades. Qual a responsabilidade de associar a
mulher negra a uma caricatura da piriguete? E a de relacionar a figura criada
da negra piriguete com a laje? E o que tem a mulher na laje a ver com “respeito”? Que
fique claro, não é qualquer respeito, é respeito àquele que come. Alguém tentou
explicar.
“ Gente, tanta mulher comendo homem nesse mundo. Tanta mulher comendo mulher. Tanto homem comendo homem. Vamos comer! Mas com muito respeito. :D”
disse um dos
participantes. Isso sim me fez levantar uma questão. Parecia absurdo antes,
ficou pior.
É mesmo?
Por ora nem comentarei a reveladora crença na heteronormatividade binarista.
O que é uma relação de respeito? Se a frase começar com “respeita a quem” ela
já é problemática porque pressupõe um sujeito a ser respeitado em específico,
com um verbo imperativo. Significa que ela denota uma relação de poder onde
estão claramente configurados alguém que manda e alguém que respeita. Como se
não fosse suficiente pra compreender a relação de poder estabelecida, a frase é
completada com o verbo comer no sentido sexual. Respeitadx e respeitadxr se
convertem em ativx e passivx, comedorx e comidx. Ora e quem é que come quem
nesse mundo? Desnecessário frisar que ativx e passivx figuram uma oposição de masculino
e feminino. Mais que uma posição de poder exposta em termos de masculinidade,
devemos nos fazer pensar, quem é o ativo? É aquele que detém o uso do poder, é
aquele que pode comer, o que pode fazer a “função do homem”, o que pode
penetrar. Diferente do que nosso amigo do comentário acima parece entender, o
ativo de uma relação sexual é no imaginário que nos é comum o homem, seja essa
relação hétero ou homo. A frase que começa exibindo uma relação de poder é
completada, deixando explícito que se trata de uma relação de poder de gênero.
É
essa frase que é ilustrada por uma negra
piriguete na laje. Essa associação revela uma misoginia imperdoável. Essa
associação revela que essa paródia não está descontruindo preconceitos, mas,
pelo contrário, os afirmando. Essa paródia se esquece que debaixo das lajes
moram mulheres que sofrem com o machismo e com a violência diariamente. Esquece
também que essas mulheres vão as ruas, sofrem racismos, machismos, classismos e
violências diversas frequentemente silenciadas, invisibilizadas. A piriguete
pode até desfilar todo seu comportamento sexual, desde que respeite quem a
come. Esse respeito é sinônimo de submissão, de obediência e passa longe do
respeito em que eu acredito. Essa paródia
é um produto que não se percebe enquanto machista, misógino, classista e racista.
É essa paródia que muitxs estudantes de comunicação não acham nada demais. Esse
é o escárnio transformado em piada. Um dos estudantes citou por várias vezes
Rafinha Bastos em sua argumentação sarcástica, o que reforça com que tipo de
piada estamos lidando.
Após
alguma argumentação, alguns favoráveis ao ponto levantado e uma larga maioria
contrária, os cinco organizadores da festa e responsáveis pelas imagens e pelo
convite, não sei de que forma, decidiram sacar a frase polêmica e modificaram a
imagem (segundo um deles, de todo o material da festa), acrescentando uma
mulher branca à beira da piscina. Muda alguma coisa? Certamente. São os
criadores da imagem racistas e misóginos? Não poderíamos afirmar pelas imagens.
Não se trata de acusar pessoas, mas de apontar um acontecimento sociológico que
tem mais a ver com o trote do direito do que querem crer alguns-mas estudantes
de comunicação. A modificação do convite anterior denota uma reflexão no caminho
da resposta negativa. Não é isso que choca. Chocante é uma maioria de um
grupo de unviersitárixs achar que tudo aquilo estava tudo bem. Achar que o problema
é alguém fazer a reclamação e não o conteúdo do convite. Aquelas pessoas
parecem não perceber que respeitar quem te come é uma cadeia de relações de
autoridade que culmina com uma figura pouco carismática no topo. Se devemos
respeito a quem nos come, devemos respeito ao masculinismo, à relação
desbalanceada de poder, a relação essencial que naturaliza e reproduz uma série
de violências. Normalizadas, essas relações de poder se perpetuam a cada dia. E
quem ganha a batalha pelo poder é o Normal. Com artigo “o”. No mundo onde se
respeita o comedor só alguém pode ficar no topo. O patriarca. O Homem come a
mulher. O Homem come o homem.
Mas quem come o Homem? Quem come o Homem heterossexual?
No mundo onde mandam os comedores, reina quem não é comido.
Confesso: esperava que ao menos no nicho
universitário, em especial na fafich, a monarquia de gênero fosse mais
fragilizada, ou no limite, que houvesse uma democracia de gênero mais audível. Por
triste que seja, a denúncia do culto ao monarca encontra palmas silenciosas, encobertas com vaias que tentam nos comer. A parte feliz é que eu acredito em
outro tipo de respeito. A outra tristeza é de minha impotência ao saber que, na
minha confortável posição de homem branco heterossexual, pouco posso fazer além
de enxergar aquelxs que pensam como eu mas são caladxs pela violência
cotidiana. Como milhões vaiando calam meia dúzia a gritar. Ou melhor, como meia-dúzia dotada de poderosos microfones calam em vaia os gritos de milhões. Gritos de dor, de pânico,
de vontade de gritar.
Por fim, não se enganem: esse texto não é sobre
o convite da festa. É sobre quantos convites à opressão de gênero, raça e
classe recebemos diariamente. Nessas festas eu não vou. Espero que sejamos
muitxs para fazer nossas próprias festas num futuro próximo – infelizmente, num
movimento que está mais próximo do querer do que do acreditar.